23/02/08

O uso da memória

(este é um post originalmente escrito em Novembro de 2003...mas sempre actual)

«Não tens nada razão nisso e, também, não tinhas nada que ter feito aquilo, em Novembro de 1999, naquela tarde fria, entre as 3 e as 4 da tarde, junto à confeitaria X».
O registo é o da caricatura mas o argumento essencial - penso - não se perde.
A memória - seja do passado comum ou da imagem do passado pré-conjungal - está sempre presente nas conversas entre homens e mulheres.
Usada de forma parcimoniosa lá nos permite o ocasional brilharete, com o consequente - e tão necessário - engraxar do ego. Será um uso benigno, que permite que homens e mulheres se auto gratifiquem, um perante o outro, sem grandes alaridos e sem grande culpa (para usar um sentimento tão querido do meu amigo perplexo3).
Usada de forma outra, calculista, pode assumir proporções de arma letal.
E nisto, parece-me, os homens são mais comedidos do que as mulheres. Custa-nos usar o «e também». Parece-nos coisa baixa, coisa de quem só anda no futebol para rasteirar os outros, coisa de quem bebe copos sempre a mexer nos bolsos e nunca encontrando dinheiro para, naquele momento, retribuír favores passados, coisa de quem fode a mulher do amigo.
Às mulheres isso sim - isso das regras não escritas entre homens amigos - parece estranho. Sobretudo tendo em conta que, em todos os momentos que não sejam os imediatamente relacionados com a data do casamento, os homens são seres mais que imperfeitos. «Onde é que já se viu, agora vem-me ele com a moralidade rota dos amigalhaços....e digo-te mais, também devias era estar caladinho porque, em 1997, naquele verão húmido....etc e tal». Sabemos como isto acaba e lá está o temível «e também», para juntar batatas com cebolas, alhos com bugalhos, areia com cal.
A lógica da argumentação de ataque ao jeito 'shock and awe' não admite sequer as interjeições, os dedinhos no ar, o abanar negativo da cabeça que o corpo nos força a expressar.
Nada disso.
A memória, aí, entra em overboost, emaranhando, numa amálgama disforme, algo contendo pouco mais de 10 por cento de factos e 90 por cento de fictos.
Antes mesmo da quebra que se segue às explosões, do silêncio necessário, tanto nos aparece um «e também estás agora com essa conversa porquê?» como um igualmente demolidor «e também nem reparaste que cortei o cabelo; nunca reparas!».
Uma vez mais foi a nossa memória que nos traíu.
E, algures no silêncio, enquanto pensamos no que podia ter sido dito (sem nunca o dizermos), optamos por recolher a outro tempo, outras imagens.
E se calhar pensamos em fruta sem caroço.

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